Tudo que escrevemos

Isto sinto e isto escrevo Perfeitamente sabedor e sem que não veja Que são cinco horas do amanhecer e que o sol , que ainda não mostrou a cabeça Por cima do muro do horizonte, Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos Agarrando o cimo do muro Do horizonte cheio de montes baixos. Fernando Pessoa

domingo, junho 17, 2007

Duas vidas eu tenho

Photo By Bruno Muniz


Duas vidas eu tenho.
Uma sonora outra muda.
Paralelas descem a montanha
Por cidades populosas sem jamais se cruzarem.
Duas vidas eu tenho.
Um talvez seja minha
A outra não sei de quem é.
Um canta, fala e ri.
Ri de tanta coisa
Fala de tudo e com todos,
Canta desafinada mas sempre canta.
A outa jamais disse nada.
Não conhece risos,
Sons de clarins, de violinos
Ou de simples vozes humanas.
Mas sei que ela existe.
Sei que é vida forte e vibrante.
Eu a sinto pulsar em mim,
Em meus nervos
Galgando as muralhas do sonho
Povoando de revelações
A incurável solidão.
Duas vidas eu tenho.
Um sonora outra muda.
Onde as fui buscar?
Não sei! Quem saberá?
Agora, já divisamos
A liberdade dos campos e dos vales
E a céu aberto
Talvez possamos adormecer descuidados.
Já não somos grilhetas dos pesadelos
Qu cavam abismos aos nossos pés,
Já não galopam as nuvens sobre os nossos olhos
Nem desabam os céus.
Éramos então, reféns dos fantasmas da insânia;
Emboscados na treva como gigantes intangíveis
Sopravam ventos de morte
E murmurando infâmias
Arrancavam as máscaras risonhas
De nossos irmãos
Para fazê-las sangrar de ódio e de despeito
E mais e mais nos mortificar.
Adormeçamos agora.
Sopram ventos benignos.
E vós gigantes emboscados na treva
Espalhando o terror das inquietudes
Sem ouvir como choravam as crianças
Sem sentir como se distanciavam os homens,
[-Rememorai!
Na imensa cúpula do inferno que compusestes,
De todas as gargantas, o mesmo brado uníssono:
¨Sangue! sangue!..sangue
Sagrado dos adolescentes!
Abram-se os ventres
Das mulheres
E tirem de lá prematuros!
Querem muito sangue
Para fabricar um novo mundo!"

Vós gigantes poderosos e intangíveis
Em alucinantes armaduras de treva
Sereis agora meros fantoches diluídos no lodo
Porque a liberdade há de mostrar-nos em breve
A luz do seu rosto sagrado.
Maria Muniz
Fonte: Livro Balada Obscura